terça-feira, 20 de maio de 2008

Com direito à ênclise

"Brasil, meu Brasil brasileiro
meu mulato isoneiro
quero cantar-te nos meus versos"

Assim cantarolava a faxineira, às 9h12 da manhã
Depois de pegar dois ônibus e um metrô, cheios de gente
E atravessar o Centro andando, para pegar pesado e ganhar salário mínimo no fim do mês

terça-feira, 13 de maio de 2008

vocabulário específico

cheia de tensão e nervosismo
a jornalista voou para Copenhagen.
cobriria ali um congresso internacional de esclerose múltipla.

cheia de tensão e nervosismo
tentou, durante o vôo, pensar em inglês
e se acalmar, raciocinando em português:

"não tem porque ficar cheia de tensão e nervosismo
é simples; é só não querer ser fluente demais com o vocabulário específico
que eu não domino. é isso: vou no simples e vai dar tudo certo"

cheia de ginga, simpatia e traquejo,
quando abriram a sessão de perguntas
no congresso internacional de esclerose múltipla,

a jornalista brasileira ergueu o dedinho
e desfiou seu inglês de number one:
- What time is it?

sábado, 10 de maio de 2008

girassóis

depois que leu aqueles versos versando sobre girassóis, amor, alegria e gratidão,
ela ainda se conteve por incontáveis 27 segundos

depois disso, já não era mais possível
e com o buquê de girassóis desajeitadamente ajeitado nos ombros

deixou que o amor, a alegria e a gratidão tomassem forma
de uma incontida enxurrada de lágrimas

que rolaram ainda por um bom tempo,
entre comentários sobre carência e coração, afogados num abraço,

que desafogava

apesar de atentos e sem espinhos
os girassóis, coitados, nada entenderam

quarta-feira, 7 de maio de 2008

bairro de manhã

O sol das 7h15 ainda estava frio.
Enquanto um mendigo flertava com uma mendiga na rua.
A senhora estava dentro de casa, ainda de pantufas.
Como às 7h16 ainda fazia frio, a senhora trazia as duas mãos juntas no peito.
Agarradinhas, como em oração, para espantar o frio.
Vezenquando fricciona uma mão em direção à outra e assoprava.
Às 7h17, a senhora abriu um sorriso cheio de rugas.
A moça do pão cruzava a rua, passava pelos mendigos enamorados e fazia seu trabalho.
Entregou o pão e se foi.
Às 7h18, a senhora não estava mais no portão.
A moça voltava para a padaria.
E o casal de mendigos ainda teria muito assunto.

domingo, 4 de maio de 2008

literatura sanitária em dois momentos

I
"
Deus, te amo
Juventude só com Jesus
Creio n'Ele
Tudo posso naquele que me fortalece
Entregue seu amor a Jesus
Jesus, te quero"
- Escritos em banheiro do Kimala Burguer's Cristo Salva - Floresta - Belo Horizonte


II
"Cruzeirense é tudo viado
Atleticano é tudo baitola
Vai tomar no Cú
Cu não tem acento
Acento de cú é rola
Cambada de gente a toa..."

- Escritos em banheiro da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG - Pampulha - Belo Horizonte

sexta-feira, 2 de maio de 2008

deitado

para chorar em cena, não tem mistério.
é só reparar como fazem grandes atores.
não tem memória afetiva, memória emotiva nem o escambal.
o segredo é simples: olhos abertos, durante a cena toda.
o olho resseca, arde, incomoda e, naturalmente, lacrimeja muito.
é só dar um tempinho, que logo o choro brota, copiosamente.
se continuar sem piscar, vira pranto convulsivo.
dá até pra calcular:
a câmera passeia pela ópera, passeia, passeia, ao som da ária.
quando a câmera pára no close da julia roberts, pega o perfil esquerdo da atriz.
e ela chora, do olho esquerdo!
e você pensa: isso é que é boa atriz!

hoje, chorei de olhos fechados, sem direito a técnica.
não era cena.